Os
livros de poesia
lêem-se
devagar
e
ao acaso.
A
não ser quando
a
mão amiga é autora
e
qualquer coisa
acontece
com o livro.
Quando
se torna inevitável escrever
porque
é vida torrencial
ao
ponto de inquietação.
Quando
toda a poesia perde o seu sentido
e
deixa de existir um último verso.
Talvez
seja esse o segredo
de
todas as grandes obras:
a
vida de um criador
muito
longe da morte.
***
Detenho-me junto do título do
livro de poesia de Sara F. Costa. Quantos movimentos
impróprios pode o mundo dar? Movimentos
que, na minha visão em particular, se parecem com a inevitabilidade de uma
elipse, uma elipse que nem sempre é própria, mas que nem por isso deixa de
existir e de ganhar todo o tipo de ligações entre aquilo que é terra e o que é
fogo. Logo o primeiro poema invade como só as
cidades invadem, atirando-nos o
horizonte de um Tejo sujo em Setúbal, um encontro súbito que se desvanece nesse
horizonte de desleixo urbano; uma metrópole que fervilha dentro do corpo do
sujeito poético enquanto o mundo se movimenta, tão lento quanto a inércia que o
suporta. É neste longo e eterno movimento que as mais variadas formas vão
surgindo como flores numa primavera distante e eclipsada. SFC interroga as
coisas que não se vêm, mesmo tratando-se da obscuridade deste mundo que se parece
a um palco. Um palco distinto onde a
sua persona parece dançar sozinha uma
valsa descontente. Um descontentamento que o é por todos os movimentos impróprios e sobre os quais
SFC vai indicando preocupações cada vez mais materiais, não abandonando totalmente
a dionísia sobre a qual a sua mão se deleita a escrever. Podemos ver como o
Universo e as suas formas astronómicas se sobrepõem entre o mundo e o interior
do sujeito poético.
É exemplar em “Na Rua em
Daugavpils”, os versos: “ninguém sabe que galáxias profundas / dissimulamos por
baixo da pele”; fazendo confundir corpos estelares transversos do corpo humano
físico que, novamente, se fazem confundir com as referências geográficas
pertencentes a SFC, “escuto o mar báltico no teu timbre”. Entre todas esncitas
conexões que põem o sujeito poético no centro do Universo, também a linguagem
assume esta importância clara de conexão do sujeito no centro da própria
humanidade. Leio os versos, ainda na mesma orientação deste poema singular: “um
homem passa por nós / enquanto te pergunta em russo / o melhor sítio para
propor casamento à amada. / subitamente sentes que percebes um pouco de tudo”.
Nesta forma é clara a questão da linguagem para o entendimento de um estágio da
vida, assumindo proporções sensíveis e femininas que estão em oposição com a
demanda rochosa e galáctica de que se faz parte da sua estética poética. Uma
estética que é súbita e consegue pressagiar o seu próprio cenário
pós-apocalíptico. Através de “O Autocarro Local” leio como se tratasse desse
cenário: “este carro é a manhã pós-soviética, / há estrelas ardidas pelo chão,
/ a noite foi inexplicável”. E é impossível não ser atirado para esse lugar
desolado que costumava ser a simplicidade de uma volta alegre neste autocarro, compondo ao longo do poema a sua
própria ambivalência destruidora tomando ponto para o caos gerado pelo sistema
em que atualmente vivemos; e em como dele não podemos fugir por mais impróprio que seja.
Em “Vou-te Contar o que
Vejo:”, outras formas se estendem nesta primavera obscurecida, interrompendo a
cadência com que os astros vibravam, mostrando antes a forma como sustêm os
homens com os seus espíritos e estradas. Novamente volta a pintar tonalidades,
“de verde, azul e branco / tudo cinzento por baixo” que se fazem confundir com a
metrópole e os diversos signos que identificam um determinado caminho que vai
“na mesma direcção” do corpo que o percorre em direcção ao seu fim último. Neste
poema vemos as ligações de SFC: entre um poema que está vivo, mas cujo seus
últimos verso são logo um cadáver. Torna-se a antítese de todas as palavras
escritas que lhes são posteriores, mostrando como todas as ligações, inclusive
aquelas que são maravilha humana “os carros alinham-se em andamento / todos com
a inspeção em dia / e as luzes ligadas à noite” se desvanecem perante a única coisa que não liga e é
desconhecimento total e absoluto: a morte.
A imagem do teatro e dos
palcos volta florescer em “Amplifica o Actor que há em Ti” como uma referência
cultural em SFC que está patente ao longo de toda a obra; como por exemplo em
“Liberdade”, “tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator e adultério /
amor / mas eu quero renascer das balas / e trazer-te livre / derramar-te no
oceano com o mesmo sangue dos atores, / do adultério e de acaso”. SFC mostra a
sensibilidade da mentira, do uso da ficção como cordão linguístico da própria
forma literária, reinventando-se de novo a cada poema que surge numa persona que é diversa, mas tangível. É
visível este deslocamento através de um corpo poético que deseja viver através
da vida de outrem, como um ator, em “Exercício de Alteridade”: “às vezes queria
ser outra para me vir como outras, / um espécie de exercício de alteridade / só
que com fodas.”. Neste poema em concreto é possível ver como a persona surge cheia de uma desenvoltura
sexual própria do imaginário pornográfico (“eu / ingénua como uma puta, /chupo
e engulo”) onde uma forma que é naturalmente feminina rompe com o dogma
masculino, impondo-se como uma igual através da corporização poética do
elemento gineceu: “porque no meu útero rebentam todos os mares”.
A feminilidade ganha uma
dimensão que se parece imprópria segundo
o contexto social e cultural do meio interior português, um meio que vai sempre
com uma década de atraso em relação à congénere ocidentalidade. O domínio de
outras geografias culturais e linguísticas em SFC permitem exercícios de alteridade que oferecem ao leitor súbitos movimentos de índole social,
nomeadamente no que toca o papel da mulher e da sua sexualidade segundo os
tempos que avançam com cada vez maior rapidez e que são distinção deste
milénio. Em nenhum momento SFC indica na sua persona a necessidade de se masculinizar para caber como igual no
centro da humanidade. São exemplares os versos em “A Ouvir o Mar da Cama”: “os
relâmpagos afogados no rosto / a areia desdobrada sobre o útero “. Da mesma
maneira surge o poema “Louboutin”, carregado destas referências de poder
feminino, onde a autora faz recurso a um símbolo de distinção social, uma marca
de sapatos com que constrói realidades difusas sobre este real poder. Uma
mulher que pode optar por não se assumir através do seu poder monetário, mas
sim do seu poder elegante e que o é seja na Louboutin, na Zara ou na China. É a
mesma poeta que autorretrata a sua persona
feminina a uma escala interplanetária em “Uma Poeta”, “deixa-me contar-te /
a relação tenebrosa entre o olhar e o rosto / a beleza original dos escombros /
escondida nos músculos dos planetas.”
Esta marca social vai-se
diluindo no outro, apontando para questões cada vez mais fundamentais no
exercício da liberdade do homem perante a sociedade dos mercados. “Dicas para
Gente Despedida” é um poema que tem a força da voz singular de SFC perante a
realidade que a rodeia e uma preocupação carinhosa
para com o que lhe é alheio, “relativiza, acredita
em ti / enquanto te embriagas até ao vómito / e pensa que o vómito é uma
condição passageira, tal como / o estado de desemprego em que te encontras.”
Existe alteridade nas próprias
composições linguísticas quando depois de “Dicas para Gente Despedida” chega
“Dicas para um Desempregado”, modificando um estado de ânimo entre um e outro
poema; quando existe a realidade súbita do despedimento e a realidade passiva
do desemprego. Indicando no primeiro segmentos de conforto e no segundo a
descrição de um tempo que é difícil de se concretizar, de proceder até ao seu fim. Por antítese surge logo de seguida “A
Semiótica do Sucesso” como se SFC tecesse o pano que fecha o seu palco poético
por cada mudança de cena: “e o meu instinto é demasiado solto / na tua postura
muito reta / na gravata inesperada aos trinta / toda a tua invisibilidade
relata a semiótica do sucesso”. SFC mantém um outro diferente, um outro que é
invisível enquanto pertence à sociedade trabalhadora, diferente daquele que é
uma dimensão social visível (o desempregado) e aquele que já se confunde
perante a normalidade social em que se insere.
De outras formas florescem as
palavras, construindo pequenas dionísias em torno de uma persona inflamada de fogo, tratando-se de uma marca que corre todo
este livro que compõe um outro capaz de suster esta respiração profunda e
emotiva. Em “Se te Esperasse Dificilmente Vinhas” logo os primeiros versos
indicam o profundo desalento de um estado amatório, “és do género fugitivo: /
existência de pó / na proa de navios sem frota”. SFC consegue espelhar a ideia
da invisibilidade deste outro que parece incorporar um humano que nunca estará
presente devido à condição exagerada do poeta e da própria poesia. Mostrando a
condição da própria musa, uma espécie de sonho em constante fuga entre todos os
corpos que se podem suceder no outro. É exemplar “Queimo-me na Boca das Horas”
nos seus versos: “lembro-me desse Dezembro doce, / da trovoada cardíaca / um
perigo com sabor a vida e / uma nostalgia a arder nas sílabas das minhas
lamentações”. O lado Fogo é intermitente em quase todos os poemas, capaz de
encadear também todas as questões Terra sobre as quais SFC se debruça. “De
Saltos Altos Felpudos”, SFC volta a caminhar no sentido de uma regeneração
feminina, mas usando sempre o recurso de uma imagem que é violentamente
apaixonada, “no meu ventre ditador / a guerra foge-me. / deixa-me fracassar /
enquanto estás quente.”. Trata-se essencialmente de uma violência que é
sensível, mas que nem por causa disso deixa de cumprir o seu programa estético negro: “quero esquecer todo este sangue
que me amadureceu / entre a idade, / quero doar-te uma pálpebra / enquanto
levanto uma palavra.” (“Um Eu Surrealista”). Nas propriedades do tipo de poesia
Fogo é possível ver determinadas inflamações de índole patriótica e regional,
como é o caso de “Portugal I” e “Portugal II”. Sendo que o primeiro poema é
indicativo dessa característica nos seus versos, “ao acordar quero beber / as
palavras derivadas da infância. / onde hastear esta bandeira de sardinhas e
ameijoas / senão no coração”. Já o segundo poema, “Portugal II” é a outra
faceta de um país que não se trata apenas de um lugar no coração,
desenvolvendo-se no sentido de uma preocupação cívica e mais terrena: “comprei
uma paisagem vazia / para condizer com a catástrofe. / a austeridade do
silêncio / não reestruturou a minha vida.”
Como em qualquer um destes movimentos qualquer corpo estelar que
esteja na sua órbita volta ao lugar de onde partiu, repetindo-se até à mais
completa infinidade. As variações temáticas compõem a chegada de qualquer
estação, mesmo quando surgem primaveras enevoadas e palavras sobre este mar que
parece banhar a mente de SFC; trazendo-nos para ricas imagens contrastantes; muitas
delas, súbitas, imersas, em acordo e em desacordo com a inevitabilidade das
emoções, mas também da inevitabilidade do que escapa à mão da poeta e é já
engrenagem universal funcionando como um automatismo. Sem que se lhe escape, no
todo, a profunda ligação que mantém com o que é humano e que segue humano
independentemente de ser central ou periférico, de se localizar dentro do
coração ou em qualquer estrada longínqua.
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