segunda-feira, 7 de março de 2016

Carta a Charles Manson (revisto, republicado e opinado)

I

Um quarto perdido numa cidade qualquer,
14 de Maio de 2009.

Hoje voltei a cruzar-me na rua com o cadáver;
não tive a mínima intenção de lhe acenar
um bom dia que seja. Os seus olhos brilhavam
através do lixo remexido. As suas mãos eram as mesmas
que as dos rastejantes brancos em quilos e quilos
de banana apodrecida.

Anda como um cão, farejando o cio da pobreza,
largado em contentores de take-away.
Nas veias corre-lhe o fumo de filas intermináveis
de escapes de automóveis; Coágulos brancos
de celulite e gordura animal,
iludidos na pigmentação rouge
dos holofotes da tua Sharon Tate
esteticamente correcta.

O cadáver atravessou uma avenida inteira,
um campo de concentração democrático
para me cumprimentar.Tinha o hálito
putrefacto da humanidade,
disfarçado no aroma do whiskey
que bebi a mais na noite passada.

Acendeu-me mais um cigarro,
que me soube-me ao travo da gasolina
de um Zippo descaracterizado:
perguntando-me pela vida.

A sua voz era a inconfundível euforia
dos anúncios publicitários
e dos pregadores de Iavé,
ocultando o grito imensurável
da estranha dor que é nascer,
para que seja mais um monte de carne
diretamente para o matadouro.

Ocasionalmente tossia aquele sangue,
sujando o meu imaculado vestido branco,
aludindo à minha virgindade perdida
na pornografia dos bons costumes.

Por certo não foste tu que mataste.
As tuas degoladas na Sharon,
tiveram só o defeito de serem psicóticas.

Contei-lhe que estamos
no tempo da fruta madura.
Falei-lhe da Haute Couture
patrocinada por uma cultura
de orientais à beira do suicídio
e ele abria a boca para se rir
exibindo os dentes negros
quentes de sujidade.

Homens calvos lambem o asfalto.
O mesmo asfalto das ratazanas,
da sostrice da corrupção,
agarrando à língua
frases feitas em rigor mortis.

Acabei por lhe falar da Helter Skelter
e ele olhou para o sol.

Levantou-se enquanto expressava
preferência pela Can’t Buy Me Love,
beijando-me a boca para se despedir.

No ar ficou o cheiro dos perfumes rançosos
e reprodução em massa praticada nos esgotos.
Na boca ficara, apenas, o gosto do desalento.

Sei que o ouves da tua jaula
a fazer barulho na canalização,
como se pingasse uma menarca.

Diria que são saudades do tempo
em que ainda cantavas baladas.

Não te pergunto pelos parentes
nesta longa carta,
sei que não estás só.

Saudades,
L.



II


"A 14 de Maio de 2009 decidi escrever um poema que, no entanto, sempre se tratou de uma carta. Uma tentativa de fazer chegar algumas palavras a um homem que ainda hoje, acredito que tenha um certo espirito. Um espirito obscurecido como aquele em que se me soltaram palavras num poema. Nessa altura ainda não lhe conhecia as suas obras artísticas, nomeadamente as que são música. Foi apenas no decurso de 2016, mais exatamente na passagem de ano novo de 2015 para 2016, que a amiga Helena, pôs algumas das suas baladas a tocar. Graças à tecnologia que temos disponível hoje em dia, mas só até certo ponto, podemos localizar ainda certas censuras. Como seria difícil, noutra festa qualquer há uma década atrás, escutar tão bem essa música impregnada do ritmo alegre dos anos 60, na voz daquele que é considerado um homem mau. Charles Manson não se limitou a matar, Charles Mason encantou e manipulou para que alguém o fizesse por ele. Ainda hoje se afirma um homem inocente.

Em 2009 era esse o tipo de homem que também me encantava. Deparar-me em 2016 que o homem é capaz de fazer arte tão distante de si mesmo. Ou haveria alguma coisa que denunciava Charles Manson já na sua música? Talvez tenha sido no momento em que fez a sua família finalmente, em que deixou a solidão em que sempre estivera – talvez tenha sido ai que as coisas se descompuseram. Ele próprio ganhou um certo ódio aos miúdos ocos que o seguiam para todo o lado e onde quer que fosse. Deixaram-se encantar, tal como o povo alemão se deixou encantar por Hitler. Não há como deitar as culpas a Charles Manson, o homem que viveu institucionalizado uma vida inteira, nem aos miúdos, produto da sociedade em que cresceram. Prenderam o homem porque tiveram medo que ele conseguisse engatar uma plateia? Prendam o Donald Trump também. Ao menos o Charles fazia música bonita.

Tenho passado tanto tempo encantada com esta figura que hoje em dia custa muito em parecer humana. Diria que o Charles é o exemplo perfeito da sobrevivência durante o encarceramento. Alegrou-se com o seu destino, tornando-se mais imbecil do que já era. (Digo imbecil enquanto alguém que se faz deliberadamente de estúpido).  Às vezes é mesmo o melhor a fazer, principalmente quando cansa dar pérolas a porcos. Talvez seja essa a razão pela qual cultivo em segredo um serial killer. Que se torna a cada dia que passa num fetishe literário. Com uma enorme vontade de poder fazer-lhe chegar algum tipo de conforto. Talvez a história da sua própria vida, vista pelos olhos de alguém que se limitou em fazer por ouvir falar.  Ou algo que nada tenha a ver com esta figura, mas sim com o seu espirito."


Excerto



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