quinta-feira, 5 de maio de 2016

Grande Atrator

Laniakea ou O Paraíso Imensurável trata-se de uma teoria recente que redefine o nosso lugar no Universo. Sabe-se, das forças que contribuem para a distensão sideral das mais de cem milhões de galáxias viajando ao longo de quinhentos e vinte milhões de Anos-Luz, de um ponto gravitacional central ao qual chamaram de Grande Atrator. Foi o Terras que me chamou a atenção para esse comando supremo que invade sem querer a vida mais efémera. A minha janela dá para uma rua de movimento lisboeta, conheço bem a forma de um rosto desconhecido. A casualidade entristece-me, principalmente quando chove e a calçada fica escorregadia. Tenho sempre medo do Grande Atrator a cada passo que dou. Principalmente de decorar uma feição larga, um riso basto, um olhar melancólico. Um rosto novo de alguém que não lembra o de ninguém, mas que é de tantos. Sei que enlouqueço a pensar nestas coisas. Sei que volto à compulsividade da Between the Bars, volto a um par de olhos num lado qualquer, indefinida numa personalidade que me é omissa.

A minha mãe faz questão em lembrar-nos de um amigo que agora está morto. Um tipo louco do Porto que sempre pareceu entender-me bem demais. O Miguel tinha um barco chamado Corto Maltese e nós tínhamos uma música comum, a I Still Can't Sleep do Bernard Herrmann. Queixava-se muitas vezes por mim, porque não bebia um copo de vinho, porque se haveria de negar assim a alguém o prazer mais comum e mortal? “Deixem o alter-ego viver”, dizia à minha mãe, mas era o mesmo que nada. Eu sentia o conforto da sua insónia permanente e já completamente anestesiada cai num sono confuso perto do seu regaço. A sua mão abraçava-me cheia das coisas que sabia, mas que não esclarecia. Lembro-me que o conheci muito miúda e naquela altura fiz as contas com os dedos para verificar se éramos tão assombrosamente distantes. Estava longe de saber que nos parecíamos de forma tão igual quando éramos ambos jovens ou quando seremos ambos tão velhos.

O Miguel tinha as histórias mais fascinantes com mulheres, fazia lembrar um Bukowski, mas ébrio de vinhos portugueses e geografias ribeirinhas. Tinha a ideia de oferecer uma ilha completamente deserta a um amigo chamado Filipe que na altura, sem saber, vivia uma depressão continua e miserável. Nessa altura a única pessoa de quem me lembrei para me ajudar a descobrir a ilha para o meu amigo foi o Miguel. Telefonei-lhe, formulando o estranho pedido que ele aceitou como se tivesse vindo de uma cabeça particularmente sã. Disse-me de imediato que podíamos deixar o meu amigo nas Berlengas, que ele só tinha que preparar o material de campismo e o espírito para uma verdadeira solidão. É fácil estar na infelicidade do lar, onde há sempre uma televisão, um computador com acesso à internet e os mais diversos estímulos familiares a quem podemos deixar a culpa da miséria individual. O meu amigo que se dizia tão deprimido e farto da vida cosmopolita foi incapaz de se deixar levar pela sua própria ideia mirabolante que eu me tinha dado ao trabalho de organizar. Liguei de novo ao Miguel que me disse logo que eu não ia a lado nenhum com rapazes tristonhos e convidou-me para ir ter com ele, para fazermos as vezes da terapia destinada a outro homem. Acabei por ter de ser eu a organizar o material de campismo, comprar um bilhete de ida para Peniche e ter de me entender com uma aventura que nunca me foi prometida. Pela viagem de caminho pensava no Filipe, em como estava a viver o sonho de que ele estava incapaz. Uma ilha deserta.

Quando cheguei encontrei o Miguel sentado dentro de um descapotável. Beijei-lhe o rosto como se fosse carinho de filha e ele ligou o auto-rádio na estação que passava continuamente os grandes clássicos do Jazz. “Então Nônô preparada para a desintoxicação da vida urbana?”. “Da vida urbana e das drogas que me dão para andar feliz”. “Também eu já fiz milhares de vezes essa cura, é sempre diferente de cada vez que as experimentas. Primeiro são os sintomas físicos que dão cabo de ti, a única forma de parar os suores frios e as tremeduras é com banhos de mar frio. Depois a vida que te esqueceste de viver enquanto estavas intoxicada, cai-te em cima como se fosse impossível de viver. Provavelmente pensarás no suicídio, nas coisas impossíveis que ficaram para trás…”. “Não é a minha ideia morrer pelo caminho”, disse-lhe, ainda sem saber das noites escuras do Oceano. “Não te preocupes, nenhum de nós os dois foi feito para morrer através das suas próprias mãos, o suicídio é só um tesão”. 

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