Laniakea ou O Paraíso Imensurável
trata-se de uma teoria recente que redefine o nosso lugar no Universo. Sabe-se,
das forças que contribuem para a distensão sideral das mais de cem milhões de
galáxias viajando ao longo de quinhentos e vinte milhões de Anos-Luz, de um
ponto gravitacional central ao qual chamaram de Grande Atrator. Foi o Terras
que me chamou a atenção para esse comando supremo que invade sem querer a vida
mais efémera. A minha janela dá para uma rua de movimento lisboeta, conheço bem
a forma de um rosto desconhecido. A casualidade entristece-me, principalmente
quando chove e a calçada fica escorregadia. Tenho sempre medo do Grande Atrator
a cada passo que dou. Principalmente de decorar uma feição larga, um riso
basto, um olhar melancólico. Um rosto novo de alguém que não lembra o de
ninguém, mas que é de tantos. Sei que enlouqueço a pensar nestas coisas. Sei
que volto à compulsividade da Between the
Bars, volto a um par de olhos num lado qualquer, indefinida numa
personalidade que me é omissa.
A minha mãe faz questão em
lembrar-nos de um amigo que agora está morto. Um tipo louco do Porto que sempre
pareceu entender-me bem demais. O Miguel tinha um barco chamado Corto Maltese e
nós tínhamos uma música comum, a I Still Can't Sleep do Bernard Herrmann. Queixava-se
muitas vezes por mim, porque não bebia um copo de vinho, porque se haveria de
negar assim a alguém o prazer mais comum e mortal? “Deixem o alter-ego viver”,
dizia à minha mãe, mas era o mesmo que nada. Eu sentia o conforto da sua
insónia permanente e já completamente anestesiada cai num sono confuso perto do
seu regaço. A sua mão abraçava-me cheia das coisas que sabia, mas que não
esclarecia. Lembro-me que o conheci muito miúda e naquela altura fiz as contas
com os dedos para verificar se éramos tão assombrosamente distantes. Estava
longe de saber que nos parecíamos de forma tão igual quando éramos ambos jovens
ou quando seremos ambos tão velhos.
O Miguel tinha as histórias mais
fascinantes com mulheres, fazia lembrar um Bukowski, mas ébrio de vinhos
portugueses e geografias ribeirinhas. Tinha a ideia de oferecer uma ilha
completamente deserta a um amigo chamado Filipe que na altura, sem saber, vivia
uma depressão continua e miserável. Nessa altura a única pessoa de quem me
lembrei para me ajudar a descobrir a ilha para o meu amigo foi o Miguel.
Telefonei-lhe, formulando o estranho pedido que ele aceitou como se tivesse
vindo de uma cabeça particularmente sã. Disse-me de imediato que podíamos deixar
o meu amigo nas Berlengas, que ele só tinha que preparar o material de campismo
e o espírito para uma verdadeira solidão. É fácil estar na infelicidade do lar,
onde há sempre uma televisão, um computador com acesso à internet e os mais
diversos estímulos familiares a quem podemos deixar a culpa da miséria
individual. O meu amigo que se dizia tão deprimido e farto da vida cosmopolita
foi incapaz de se deixar levar pela sua própria ideia mirabolante que eu me
tinha dado ao trabalho de organizar. Liguei de novo ao Miguel que me disse logo
que eu não ia a lado nenhum com rapazes tristonhos e convidou-me para ir ter
com ele, para fazermos as vezes da terapia destinada a outro homem. Acabei por
ter de ser eu a organizar o material de campismo, comprar um bilhete de ida
para Peniche e ter de me entender com uma aventura que nunca me foi prometida.
Pela viagem de caminho pensava no Filipe, em como estava a viver o sonho de que
ele estava incapaz. Uma ilha deserta.
Quando cheguei encontrei o Miguel
sentado dentro de um descapotável. Beijei-lhe o rosto como se fosse carinho de filha e ele ligou o
auto-rádio na estação que passava continuamente os grandes clássicos do Jazz. “Então
Nônô preparada para a desintoxicação da vida urbana?”. “Da vida urbana e das
drogas que me dão para andar feliz”. “Também eu já fiz milhares de vezes essa
cura, é sempre diferente de cada vez que as experimentas. Primeiro são os
sintomas físicos que dão cabo de ti, a única forma de parar os suores frios e
as tremeduras é com banhos de mar frio. Depois a vida que te esqueceste de
viver enquanto estavas intoxicada, cai-te em cima como se fosse impossível de
viver. Provavelmente pensarás no suicídio, nas coisas impossíveis que ficaram
para trás…”. “Não é a minha ideia morrer pelo caminho”, disse-lhe, ainda sem
saber das noites escuras do Oceano. “Não te preocupes, nenhum de nós os dois
foi feito para morrer através das suas próprias mãos, o suicídio é só um tesão”.
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